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Escrevo-te a tinta virtual



Sem forma, nem gesto, nem face,
como tinta de sangue que lacera as penas
nos abismos de uma enorme ferida,
a luz purpúrea e equinocial do cair da tarde
penetra como um espinho na minha carne.

Escrevo-te a tinta virtual.
Imperceptível, mas indelével.
O papel, um cristal de vídeo
numa floresta de sons mudos
vestidos da distância que traja
a dor imperecível da saudade.

Escrevo-te a tinta de água.
As minhas pálpebras piscam
sobre a íris fatigada
na perscrutação do horizonte líquido
de que se revestem as lágrimas.

Escrevo-te, pois, a tinta de sal,
imaginando que te vejo
através da bruma vermelha
que beija o mar e a areia
nos espelhos de silêncio
que purpurejam o ocaso.

Como vento bramindo rente ao velame
de um navio sem roteiro e sem escala,
os meus dedos fustigam as claves mudas
enquanto te sonham lume e verbo
no recuo da tarde frente à noite escura.
Escrevo-te, assim, a tinta de sangue.
A tinta de sangue te escrevo
nos umbrais do incêndio em que anoiteço.





Dá-me um pedaço desse teu deserto nu,
e com ele modelarei os meus dedos de areia.
E os meus dedos de areia hão-de ter raízes
e dessas raízes hão-de brotar palavras sobre as claves mudas.
E as claves mudas hão-de converter-se em lenho
e o lenho em nau. Uma nau romana, estranha,
de fogo e verbo greco-latinos, ondulando vertiginosamente sobre a espuma das águas
ao sabor das rajadas inclementes do vulturno.
Como um nocturno avejão de asas largas
profundamente dilaceradas.


Uma nau sem velas, nem leme, nem mastros, nem remos,
vogando opaca e silenciosa na noite atra
em busca de um porto de abrigo.
Uma nau fantasma que tenha por vexilo
a saudade da memória inicial
e por tripulantes os espectros de pedra, vento e areia,
que são os meus dedos de silício. Nados do deserto urbano. Que é o meu deserto.
O deserto nu onde te procuro,
ora convertido num frígido e plangente cristal de vídeo.


E é este gélido cristalino que teima em alterar,
por inversão, as retínicas e idílicas imagens
dos meus horizontes longínquos. Perdidos na voragem
da distância-abismo gerada e soprada por muitas ondas,
nesta floresta panda de sons mudos que esmagam o vazio.
Vazio que se veste de espelhos de branca espuma
e de uma miríade de lâmpadas estranhas.


Procuro-te, pois, no deserto urbano, através do abismo das sílabas
e de uma infinidade de labirintos sem margens.
Sei que é no seu termo que se encontra a afirmação dos teus olhos
e a confirmação do teu sorriso ático.
Por entre o silêncio tácito das arcas encoiradas
e o sossego deslumbrante dos livros antigos,
surges-me, assim, sol, asa, brisa, farol,
e ao teu porto de abrigo me recolho
como sedento peregrino ao viridente oásis.


R. Sakamoto – Merry Christmas Mr. Lawrence


É Natal, e no entanto…



Ah, pudesse eu ser início,
a chuva, o vento, o breve relâmpago
ou a resplandecente alvorada
de onde brotam todas as coisas!

Ser talvez um reflexo de tempo e de sol
sobre a vertigem da gota de orvalho
que cintila sobre os espelhos da madrugada.

Ser a ponte pênsil sobre o vazio
ou porventura a quietude indecisa do nada.


Ah, pudesse eu ser a palavra
ou o sinal do vento estranho
que escolta a ave que no outono emigra
num rumo de primaveras e árvores verdes
numa façanha irisada de infinitos!


Ah, pudesse eu entrar pela estrela de alva
e ouvir a tua voz nítida e doce
pairando sobre a quietude do solstício
num anúncio de aconchego e de Natal!


Ah, mas não sou,
não posso ser,
nem ouço a tua voz…
e assim me calo.








Não obstante...


Há algo de diferente
no círculo luminoso do Natal.
Algo radioso e belo
que, furtivo, se insinua
num despertar tranquilo e sem lamentos.
Como se as estrelas embutidas no firmamento
até nós descessem, inconscientes,
para fazer parte da nossa carne e da nossa mente.


(Como se desde sempre nos pertencessem)

Oliver Shanti & Joanne Shenandoah, "You can hear them dancing"


a flor do jarro



no vale do amor
sob as colinas
a bráctea alva
e espiralada
de uma flor de jarro.


deambula na envolvência
silente dos lençóis
e nos contornos do lume
quente dos seus olhos.


veleja na luz intensa
e sem penumbras
dos seus túmidos seios.


os seus dedos de areia
vagueiam pela epiderme incendiada
e naufragam nos anéis
de centeio dos seus cabelos.


em delírio
devaneiam.


tresvariam na nudez escarlate
e nítida dos anelos
noite após noite
sobre a pele mate
como se rubras pétalas
de rosas perfumadas
vogando ao sabor do vento...
abertas.




Camille Saint-Saens, "Danse macabre, opus 40" (1874)
(estreada no Teatro da Corte de Weimar em 2DEZ1877)





(…)
Praias do Índico, idos de 2001.

Aqui, quando quente e húmido o vento sopra do largo, é Natal. E as chuvas da Monção abatem-se sobre o hotel e recordam-me a noite tempestuosa e bela em que nos tivemos nos braços um do outro. Lembras-te da bela surpresa que me fizeste com um véu que portava o Taj Mahal?
Nostálgico, mergulho nas mornas águas da Mãe África, e enquanto elas me empurram rumo à superfície, lembro-me do nosso tempo único e irrepetível.
Aqui estou agora, à tua espera, nesta erma praia do Amor, onde as areias faíscam de ouro régio e é possível sonhar sereias e pégasos porque estas são as terras míticas e “abensonhadas” de Mia Couto.
Resisti em regressar a estas paragens onde nos amámos, mas um dia, dois moçambicanos que encontrei no Terreiro do Paço, mostraram-me fotografias de tandos e florestas, e de mulheres e de homens de África com seus belos torsos nus, em tudo semelhantes àqueles que no Sudão fizeram a paixão de Riefenstahl, a fotógrafa maldita, e eu não resisti e obedeci ao chamamento da saudade.
A minha pele tisnada e crestada pelo Sol africano, assemelha-se à destes Hércules, e mal consigo entreabrir os olhos para admirar o mar que tenho a meus pés, que vibra em miríades de centelhas de prata, tal a intensidade do astro-rei que parece ancorado nos espelhos de claridade deste céu infinitamente opalino e transparente.(…)

Peregrino, in “O Templo das palavras Esquecidas)




Peregrino, in "O Templo das Palavras Esquecidas"