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Richard Strauss, “Assim falou Zaratustra, opus 30”, fragm. “Amanhecer” (1896).





Madrugada




se escutares
a voz de silêncio das estrelas,
ouvirás dizer que tu chegaste.
que chegaste nas asas do galerno,
essa corrente eterna
de ar oloroso e fresco
que sopra do mar.
e se olhares para trás,
para o rasto perfumado dos teus passos,
verás nos rostos dos que te seguem
o espelho cristalino do teu sorriso
solto no céu anil da madrugada.


[se te disser que chove na noite dos meus olhos
e que neva na madrugada do meu coração, não te minto.
são frases tão correctas como correcto é dizer-te que o quarto de lua
cavaqueia neste momento com a bela sadalmelik na constelação do aquário
e que o sol cintila, na sua luz branca, constelado pelo carneiro,
enquanto júpiter adormece, lânguido, no asterismo do sagitário.]




(29ABR2008, 22:00 horas)





Joaquín Rodrigo – “Concierto de Aranjuez” 2º Mov.
Interpret. à guitarra, Paco de Lucía (epdlp)




e todavia...



tudo volta ao princípio:
as flores, as pedras, a bruma, a tempestade...
e cada grão de tristeza
de que é feito o meu corpo
é levado pelo vento
e é-me devolvido pelo mar.
assim hoje,
tal como ontem e amanhã,
em ciclo,
incessantemente.


morrer leva tempo.
o tempo exacto de morrer devagar.
morri ontem, morrerei amanhã,
e no dia seguinte serei pedra, gelo, cinza, lava...
não sei onde mora o regresso.
só sei das folhas de outono e
das flores de inverno.
não das da primavera.


ainda que não chova,
outono-me na noite fria,
sem bússola nem polar,
por entre a neblina e as árvores.
divago assim dentro do inverno adiado
e adagio-me em arco sobre as cordas
tensas de um violino amargurado,
como se uma lia de veludo a partir-se.


[entanto, há tanto frio e tanta chuva morta,
e tantas folhas molhadas, perdidas de inverno,
penetrando oblíquas pelos umbrais da minha porta!...]





Gabriel Fauré (1845-1924), Pavana, opus 50.
.

Pavana triste pela mocinha
vitimada pelo coronel (in)sensível


Sim, quinze anos tinha
no seu corpo em brasa
a infeliz mocinha
que não tinha casa.
Tinha tranças d’oiro
e a pele alvacenta,
tu foste o primeiro
a arrastar-lhe a asa
naquele Janeiro
dos anos setenta.

Ela pai não teve
sequer tinha mãe
não tinha sapatos
não tinha vestidos
não tinha ninguém,
só dias sofridos.

Não havia lua
não havia estrelas
nem sequer abrigo,
a casa era a rua
da pobre donzela
que não tinha amigos.

O seu corpo grácil
de pele de alabastro
jamais resvalado
em sua puridade
não tinha cadastro
mas foi presa fácil
dum lobo esfaimado.

Se um dia voltares
à estrada velha
no negrume agreste,
detém-te e descobre-te,
acende uma vela.

Verás numa faia
- ou “feral cipreste”? -
a seta-coração
bem como a mensagem
que a bela catraia
em aflito pranto
no tronco entalhou
nessa noite túmulo
do seu corpo espanto.
Verás, para cúmulo,
que foste o primeiro
e também o último
a dar-lhe dinheiro.

(Peregrino)

NOTA:
a expressão “feral cipreste” foi retirada de "O Noivado do Sepulcro", de Soares de Passos.

já a seguir, o bolero do dito coronel:


Bolero do coronel sensível
que fez amor em Monsanto


Eu que me comovo
Por tudo e por nada
Deixei-te parada
Na berma da estrada
Usei o teu corpo
Paguei o teu preço
Esqueci o teu nome
Limpei-me com o lenço
Olhei-te a cintura
De pé no alcatrão
Levantei-te as saias
Deitei-te no banco
Num bosque de faias
De mala na mão
Nem sequer falaste
Nem sequer beijaste
Nem sequer gemeste,
Mordeste, abraçaste
Quinhentos escudos
Foi o que disseste
Tinhas quinze anos
Dezasseis, dezassete
Cheiravas a mato
À sopa dos pobres
A infância sem quarto
A suor, a chiclete
Saíste do carro
Alisando a blusa
Espiei da janela
Rosto de aguarela
Coxa em semifusa
Soltei o travão
Voltei para casa
De chaves na mão
Sobrancelha em asa
Disse: fiz serão
Ao filho e à mulher
Repeti a fruta
Acabei a ceia
Larguei o talher
Estendi-me na cama
De ouvido à escuta
E perna cruzada
Que de olhos em chama
Só tinha na ideia
Teu corpo parado
Na berma da estrada
Eu que me comovo
Por tudo e por nada

(António Lobo Antunes)




vazio



pois que frágil é o corpo
e efémero é o sonho,
talvez tenha sido
um incêndio de olhos,
quiçá de relâmpagos,
ou um reflexo de sol
sobre espelhos de água
de brilho intenso.


acaso um vento
magnético e solar
terá soprado naquele verão
numa estranha fluorescência de oiro e fogo
e iluminado, em intermitência,
qual boreal aurora,
os misteriosos altares do nada.



Johann Pachelbel, Cânone em ré maior (1680)






nas longas noites
que do céu caem
frias de inverno
no mês de jano
que imperturbável cresce
enquanto o glacial bóreas
talha sob o alvor do luar
os harmoniosos sincelos
quero incendiar-me
no fogo dos teus lábios
no fulgor dos teus olhos
no verão dos teus braços
no veludo quente da tua pele
e adormecer sob os altares de vento
da primavera dos teus cabelos.



Shambala



Passei a tarde toda à tua espera, à beira do lago do Jardim dos Poetas, na Cidade-Luz, esse flamejante paraíso da nossa Galáxia, onde rumorejam as fontes, os poetas e os deuses e vicejam o jasmim e o nardo, por entre palácios de zimbórios ogivados circundados por verdejantes e espaçosas alamedas.

O Sol flutuava sobre o Poente, quando observei a tua silhueta fascinante e sedutora no cimo da escadaria de mármore do Palácio do Caminho do Meio que margina o lago juncado de nenúfares multicores, à hora a que os céus se preparavam para entardecer sobre as dunas douradas do imenso e desmedido Gobi.

É esse, como sabes, o momento exacto e sublime em que a fulguração dos raios de luz do astro-rei produz um efeito alucinante de brilhos e refulgências sobre os rubis e safiras incrustados nas torres e cúpulas levantinas dos pujantes templos e palácios da Cidade-Cintilante.

Vi-te assim, vestida de serenidade e encanto, em Shambala, a cidade mítica e esquecida do deserto, em contraluz gerada por uma miríade de nitescências de cristais, gelo e areia.

Contemplei-te, pois, trajada de dignidade, bondade e meditação, junto à estátua de oiro do velho Gautama, no Jardim dos Poetas. E só dei pela noite quando tu saíste, e as estrelas te seguiram.

Só eu fiquei na escuridão.
Sonho-te agora, na penumbra dos dias, sob o azul fulgurante das memórias que flutuam sobre as searas brancas e luminosas da Cidade-Utopia, e espero-te. Na encruzilhada dos Oito Caminhos. Junto à estátua do velho Siddhartha. Em sonhos te aguardo.

Peregrino, in o "Templo das Palavras Esquecidas"


Arcangelo Corelli, "12 Sonatas para violino, violoncelo e clavicórdio"
Fragmento "nº 12, La Follia" (1700).




Geometria


Hoje não falarei, meu amor,
das essências do Oriente
nem da ambrósia que rocia os teus lábios.
Tão-pouco referirei
os capitosos elixires
do amor e da existência,
ícones sagrados da tua presença.

Hoje quero falar, e só,
da geometria acesa do teu corpo
e da gramática estilizada dos teus lábios,
onde paira a divina parábola.
Quero que saibas
que os teus olhos acendem os meus
e que meus dedos buscam nos teus
o alfabeto rosa
com que costuro as palavras.

Hoje quero falar da geometria
das colinas onde crescem as cerejas,
da planície e do monte do desejo,
do teu sangue quente,
que conduz nas minhas veias
o consolo e o alento.

Hoje quero falar dos ramos da hipérbole
que convergem na tua cintura de deusa grega,
das curvas elípticas dos teus lábios,
da linearidade do teu carácter,
da textura aveludada da tua pele,
do calor do teu corpo,
que me abriga e dá prazer;
do trigo do teu cabelo,
do aroma dos teus lábios
e da cintilação dos teus olhos
à luz azul-rosa dos néons da alameda.

Hoje não falarei, amor meu,
de néctares nem de filtros,
nem de essências do Oriente;
tão-pouco vou falar do azul do céu,
do etéreo timbre dos violinos de Corelli
ou do sonho que me prende, recorrente.
Hoje quero, amor, que ouças apenas, e tão-somente,
a geometria das coordenadas do meu silêncio...



Germán Diaz, "Ausência".




que farei das palavras sem o mel
lunar que escorre do teu rosto?
que farei do lume deste verbo
que nasce das pedras pandas
e trepa e viceja e medra como hera?


sim, que farei das palavras em que navego,
sem a simetria da parábola do teu torso?
que farei eu, que sou a assíntota
da hipérbole infinita do teu corpo?


que farei dos violinos de outono
que acordam e soluçam o meu desespero
quando anoiteço à deriva
como um rei sem trono?


que farei nos degraus oblíquos do amanhecer
por entre o zéfiro e o roxo das uvas
no odor morno e agridoce a fruta e a vinho mosto?
sim, quem me vai acordar “when september ends”?



Arcangelo Corelli, "12 Sonatas para violino, violoncelo e clavicórdio"
Fragmento "nº 12, La Follia" (1700).




Sonhos, vagos sonhos...




Sonhos, sonhos vagos,
sonhos azuis, castanhos,
delírios conscientes
germinados no sal da saudade.


Sonhos, vagos sonhos
que suspendem no vento
a minha voz silenciosa
e os meus segredos.


Sonhos, vagos sonhos, breve esperança
que a brisa singela eleva nos seus dedos
qual arco-íris que vagueia embutido
na bola de sabão duma criança.



Pela Paz, contra a Guerra!





Pela Paz, contra a Guerra

[Escrito a 12FEV2003 (5 semanas antes do início da guerra do Iraque)]


Umbelas, aviões e helicópteros
estrelam o céu azul eterno
do país da lendária Semíramis.


Rambos pintados destilam filtros de ódio
no berço da Primeira Civilização
e matam e morrem em guerras de petróleo
para impor a Babilónia o seu padrão.


Fragrâncias das Mil e Uma Noites
caldeiam-se com cheiros acres a Vietname
nos céus que foram da antiga Babilónia,
agora rastreados a branco por mísseis Sam.


E voltam a cair do azul infindo,
no suor dos camuflados amarelos
e de verde suspeito,
não babilónicos sonhos a Sherazade
mas Medusas que a sábia Ateneia
transforma em serpentes
que rastejam areias de oiro em pátria alheia.


E chovem divisões, tanques,
navios de guerra, jipes, camiões,
exércitos de Yankes,
helicópteros, aviões e
mísseis balísticos ar-terra-mar
em todas as combinações.


E há bombas laser,
porta-aviões,
granadas, balas e outras munições,
máscaras anti-gás,
baterias de canhões
e armas electrónicas.


Alguém viu armas químicas,
nucleares, biológicas?
Não?
Porquê a guerra então?!


Em terras de amavios e de essências
há filtros de ódio e contingências
de guerras económicas de petróleo.


Na madrugada do deserto inda estrelada
perecem xiitas, sunitas, americanos,
baralhando religião e liberdade,
quando se batem e tombam
apenas pelo ouro negro de Bagdad.


E morrem com estes homens,
crianças, velhos, jovens,
e mulheres duplamente sacrificadas
pela Bíblia e pelo Corão.
Tudo isto no país de Aladim,
terra que foi de fadas
e de varinhas de condão;
terra de magia e de lendas,
de princesas, mágicos tapetes e sultões,
em que a mítica Bagdade
apenas tinha um Ladrão.


Acabaram os elixires
no país de Sinbad,
ora sem génios nem grão-vizires.
Os tapetes mágicos
são agora aviões F-Dezoito e F-Dezasseis
e poderosos mísseis cruzeiro
trepassando os céus sangrentos de Bagdad.


Em terras de amavios e de essências
há filtros de ódio e contingências
de guerras económicas de petróleo.


Na antiga Babilónia e na velha Assíria,
terras de lendas, berços de antigas civilizações,
não queremos heróis a haurir o hidromel das Valquírias;
tão-pouco concebemos o retorno dos Quarenta Ladrões.


[Pela Paz, contra a Guerra,
virtuosa frase que a honra encerra!]


12FEV2003