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Gotan Project – Paris, Texas






Sonho, não quero acordar





Mote:
Entre lençóis de alvo linho,
sonho, não quero acordar.




À noite o meu pensamento
abrigarei com ternura,
consumando a aventura
de viajar com o vento.
Qual ave que busca o ninho
para nele pernoitar,
entre lençóis de alvo linho,
sonho, não quero acordar.



Já me atormenta a saudade
de ao seu seio me acolher
e tudo farei no mister
de amar a minha deidade
com a doçura e carinho
com que a areia beija o mar.
Entre lençóis de alvo linho,
sonho, não quero acordar.



Este eterno delirar
beijando os lábios macios
em devaneios ao luar,
afasta os dias sombrios.
Nas noites em que caminho
ao longo do seu olhar,
entre lençóis de alvo linho,
sonho, não quero acordar.


E dou por mim a cismar:
não perderei a esperança
do dulçor do seu olhar
que o meu coração já alcança.
Com ela vivo a sonhar
E não me sinto sozinho.
Entre lençóis de alvo linho,
sonho, não quero acordar.



Nas noites silenciosas,
sob um quarto de luar,
busco as suas mãos mimosas
e beijo os seus lábios rosas
no pinheiral junto ao mar.
Por entre aromas de pinho,
entre lençóis de alvo linho,
sonho, não quero acordar.



Quando nas noites d’Inverno
o meu corpo com o seu fremir
na magia dum beijo terno,
com ela vou compartir
por sobre a neve de arminho
a luz do céu estelar.
Entre lençóis de alvo linho,
sonho, não quero acordar.




o amor



este sentir
este dulçor
que nos envolve
e que ressoa
e se repete
e se insinua
ora agitado
como uma vaga
ora sereno
qual luz da lua
e sem embargo
evanescente
qual breve espuma
ontem e hoje
tal como dantes
eternamente
meloso e amargo
como as flores
e se enciúma
por tantas vezes
tão requebrado
e elanguescente
e sobremodo
tão estranho
e tão bondoso
antes cativo
tão doloroso
pesado e leve
como um suspiro
quando nos foge
e faz sofrer
tão abstracto
quanto alheio
e indefinível
e tão imenso
quão impreciso
indecifrável
misterioso
acaso simples
e no entanto
tão complicado
e tão difícil
que ora aquece
ora resfria
sem ser fogo
sem ser gelo
pedra polida
quase infrangível
e todavia
também se quebra
por vezes alto
quase intangível
impetuoso
na eterna busca
de fins sem meios
é cego e surdo
por vezes louco
nos seus anseios
de tudo um pouco
e apesar disso
é tão fiel
e tão maduro
e tão constante
quantas as vezes
em que é instável
porque imaturo
e inconstante
e ainda assim
tão perdoável
mesmo na dor
e no castigo
este sentir
esta emoção
esta harmonia
esta paixão
que nos envolve
em alegria
esta doçura
este langor
que nos atrai
e nos encanta
que às vezes parte
num mar de lágrimas
mas não se esvai
antes redobra
e não soçobra
tão promissor
sempre que volta
chama-se amor.







desencontro




procuro-te no silêncio agudo
das arestas da noite.
respondem-me os néons,
em equações severas, nocturnas,
que se espraiam em sombras
soturnas pelo estuário da minha mente.


oh, como é dura e arbitrária
a álgebra dos amantes!
maleável para muitos,
para outros imperscrutável,
rege-se por insanas equações
com muitas incógnitas
e raras soluções.


sigo o fogo do teu corpo
que aquece a noite
e dissipa a cerração.
sinto-te perto.
desço a “avenida da solidão”
e enxergo, na neblina
que se ergue do rio,
a brancura suave do teu colo.


subo atrás de ti a “rua do silêncio”,
onde, na madrugada das estrelas,
cai uma poalha de ouro
que flutua em cristais de luz e cor
que se confundem com os teus cabelos.


sigo-te agora nas brisas
do nardo e do jasmim.
no ar, uma mistura de essências e perfumes
faz-me perder de novo o rumo.


uma flor de lótus embriagada
flutua e dança num lago de lua.
delineia, na sua marmórea limpidez,
a curva que do teu ombro desce ao núbil flanco.
no enigma de espelhos que me rodeia
esqueço-me e confundo-me a meio do largo.


na geometria distraída duma placa toponímica
se prende a minha atenção.
gravadas a letras negras e silenciosas,
caem sobre mim, dolorosas,
as palavras “largo da desilusão”.


comparo-te ao fulgor das estrelas
que brilham na escuridão:
azul e oiro sobre os abismos da noite.
como os astros, não te deixas tocar.


[- tempo, silêncio, distância -
três incógnitas indecifráveis
navegando à bolina
sobre a equação cristalina do teu olhar.]



eflúvios




como a chuva
que meus lábios molha
quisera receber de ti
a mádida pérola
que teimosa
pela tua face rola
e se abandona
no veludo dos teus lábios.



quisera ser para ti o chão
que bebe a uva
e recebe a folha
que baixa do outono
na desfolha
da minha solidão.



quisera ser a viração singela
que beija os teus cabelos
e afaga o teu belo rosto
em cuidadosos desvelos
nas manhãs de primavera.



quisera alcançar a felicidade
nirvânica da certeza mística
e receber de ti o estável equilíbrio
do infinito absoluto
cuja nitidez dói
de tão intensamente azul.


quisera…


Ralph Vaughan Williams (1872-1958) - "Sir John in Love",
frag. “Fantasia on Greensleeves “






folhas de outono


na alameda do esquecimento,
onde o vento de outono
varre as folhas esquálidas,
outrora verdes,
oiço os suspiros moribundos
dos velhos estandartes
que na vernal brisa drapejaram
tendo por fundo o azul dos céus.


na frescura dos tempos idos,
ciciavam aos rouxinóis e colibris
o hino e a alegria da mãe natura,
a mesma que ora as aniquila e devora
como pássaros mortalmente feridos,
enquanto o viço da relva, soluçante,
bebe as suas lágrimas de sangue e de cansaço
e em orvalhados beijos se despede
das rumorejantes companheiras de um equinócio distante.


[tal como os humanos,
as folhas de outono não entendem
o eterno e incessante retorno das coisas]



El Condor Pasa - Espíritu Andino




Zeferino



Zeferino tem tudo
o que quer
e o que não quer


Tem emprego
mulher na cama
dinheiro no banco
filho na escola


Não tem amante
mas sabe que ama
e todavia sente-se
pássaro na gaiola


Com sonhos condores
quer subir aos píncaros
e ver as fontes e ouvi-las
no inquieto sossego
de seus rumores


Quer escutar
o ramalhar das árvores
nas encostas dos montes
dormir ao relento
ouvir o rouxinol
sentir nas faces o vento


Zeferino quer fugir
p’ra ver morrer o Sol
em baixela de oiro
à tardinha no mar
e em taça de prata
ver nascer a Lua
atrás da serra


Mas Zeferino
preso em casa
põe-se à janela
e só vê a rua.



O Senhor do Tempo



Costumava passear-se pelas divisões da nossa casa um senhor muito velho, que se detinha por períodos muito dilatados junto do enorme relógio pendular da biblioteca. Este, que se encontrava num dos cantos mais iluminados da grande sala rectangular, estava embutido numa enorme caixa de mogno negro com incrustações a ouro e prata. Ninguém sabia ao certo em que época fora construído aquele relógio. Sabíamos somente que o mesmo fora comprado pelo meu trisavô materno num leilão de objectos que tinham sido pertença dum conde arruinado. O senhor muito velho e muito alto tinha uma grande admiração pelo relógio. Diria mesmo que um enorme fascínio o retinha à frente do precioso medidor do tempo. Estava sempre presente quando o relógio surpreendia o silêncio da casa com as batidas monocórdicas das horas, anunciando que uma pequena partícula de vida, de matéria, ou de nada, desaparecera para sempre do local onde nunca estivera.


E se falo em silêncio, é porque este realmente se fazia sentir por toda a extensa sala, dado que até o som cavo e compassado do movimento oscilatório do pêndulo adormecera de cansaço, no incessante vaivém que flutuava ora aquém ora para além das memórias submersas. Vim a saber, alguns anos mais tarde, que era preferível chamar "tic-tac" a tal movimento pendular, e não “vaivém”, porquanto, na sua demora, o tempo que “vai” ausenta-se e já não “vem” mais.


O homem alto e velho, em cujos olhos negros e profundos habitava um ar lânguido de vagar e paciência, transportava na mão direita uma antiquíssima ampulheta, na qual colocara finíssimos grãos de areia do Infidável Deserto, que ficava para além dos cumes azuis da Grande Distância. Por vezes, trazia não esse relógio e sim uma clepsidra, também velhíssima na aparência, constituída por dois vasos de ouro da mesma capacidade. Vim a saber que a água que neles circulava fora trazida da Fonte Clepsidra, que ficava num solitário e montanhoso aclive da Messénia, lá longe, no ensolarado Peloponeso, e que fora nessa fonte que as ninfas banharam Zeus-menino.


Na mão sinistra o senhor idoso trazia sempre um enorme gadanho polido e afiado, embora já bastante denteado e coberto de ferrugem nos contornos opostos ao gume, logo a seguir ao cabo.


O velho senhor tinha barba e cabelos muito encanecidos, que lhe caíam pelo rosto e ombros em finíssimos fios de prata, e as mãos, que estavam muito bem tratadas, eram sulcadas por veias de um azul profundo e muito saliente. Estavam sempre estendidas para a terra, insinuando-se como se raízes ao contrário, que quisessem agarrar algo que nunca chegámos a decifrar.


Tinha um semblante muito triste, esse senhor. Cheguei a pensar que não gostava do seu ofício, embora eu não soubesse na altura se ele tinha alguma profissão. Vim a saber mais tarde, já muito longe da minha infância antiga, que o mester desse senhor lhe exigia um esforço tremendo e uma atenção cuidadosa e permanente. Mas, apesar dessa atenção especial e do cuidado extraordinário posto na execução das suas tarefas, e a despeito de ser um exímio matemático, enganava-se amiúde na contagem do tempo, o que talvez fosse devido à senilidade e ao cansaço. De tal forma, que, com uma frequência inusitada até nas contas dos homens, chegava a considerar que crianças de tenra idade eram já muito velhas. Por vezes também se enganava na contagem do tempo dos idosos, e estes faziam todos os possíveis por não lhe despertar a atenção, pois se o fizessem, ele nesse mesmo momento lhes fecharia as contas, saldando-as.


Em boa verdade, nós nunca víramos o senhor idoso que se passeava pela nossa casa, nem sabíamos ao certo da sua existência. Conhecíamo-lo apenas através de quadros pintados e assinados por pintores do Renascimento e até de épocas mais recuadas, mas pressentíamo-lo na sua errância pela casa.
Mais tarde, soubemos da sua existência real por um nosso vizinho e amigo, ao qual chamávamos avô, devido à sua avançada idade, muito embora parecesse um jovem se comparada a sua velhice com a do senhor da ampulheta.


Disse-nos esse vizinho, homem muito atilado e sabedor, porque viajado pelos raspados palimpsestos da Grécia Antiga, que esse velho era omnipresente, e desde sempre andara por ali, junto das pessoas, medindo todos os seus tempos. Até mesmo os tempos do passado sem futuro, os do presente sem pretérito, os do futuro sem presente e também os do infinitivo sem condicional. Disse-nos ainda que ele medira os tempos de todos os residentes da nossa casa desde a sua construção, há séculos, até aos nossos dias e que continuaria eternamente nessa tarefa de fim imprevisível. E dizia que esse senhor estava presente em todas as casas, e ruas e montanhas e mares, desde o princípio, medindo o tempo de todas as pessoas, animais e coisas.


Um dia perguntei ao meu avô-vizinho quem apontava o tempo desse velhinho, e ele respondeu-me que ninguém, porquanto o senhor muito idoso era o próprio Tempo. Trabalhava desde o arranque do árido e do vazio, quando nos umbrais dos abismos as sombras da vertigem inicial ainda nada tinham a ver com a luz e muito menos com as trevas. Desculpava-se o velhinho, dizendo que não dispunha de tempo para si, desde sempre. De resto, nem tal faria sentido, dado que esse senhor nada tinha. Era, somente.


Como disse, nós nunca víramos esse homem. Mas agora, que sabíamos que ele andava por ali, sentíamos amiúde a sua presença, os seus passos vagos e até a sua respiração surda e ofegante ao longo dos corredores extensos dos dias e das noites. Por vezes, pressentíamos um ligeiro rumor de asas, mas nunca chegámos a saber se o senhor tinha asas, apesar de pensarmos que ele necessitava delas para mais rapidamente se deslocar de um lado para o outro no cumprimento das suas tarefas urgentes. Tão habituados estávamos à sua companhia, que o mesmo já nos era familiar. Como se por ali andasse desde o início, tal como nos dissera o nosso vizinho.


E nós, e todas as pessoas, sabíamos que ele apontava todos os minutos e horas e dias e anos e até segundos das nossas vidas no velho pergaminho, e sabíamos que um dia esse homem já não teria mais tempo para apontar a cada um de nós nem aos outros. Em boa verdade, nunca chegámos a saber se era ele que, fatigado, decidia que já não queria apontar mais tempo, ou se este simplesmente chegara ao fim, independentemente da sua vontade. Talvez essa vontade fosse a das cristalinas gotas de água que ele recolhera na longínqua fonte da Messénia, no início do vazio, ou a dos finíssimos grãos de areia branca que trouxera do Infindável Deserto, no princípio da longa distância.


Numa noite chuvosa e fria, quando nos encontrávamos à lareira da biblioteca com o nosso vizinho, ouvimos o relógio bater compassadamente a meia-noite. Foi nesse preciso momento que lhe perguntei como se chamava o senhor que apontava o tempo.


O nosso vizinho respondeu-nos que alguns lhe chamam Cronos, enquanto outros lhe dão nomes diferentes. E acrescentou que ele cronometra tudo com um relógio muito especial e invisível, e por isso mesmo desconhecido dos humanos.


Disse-nos ainda que nos referiu que o senhor idoso se regulava por clepsidras e relógios de areia, por assim ter lido nos rasurados palimpsestos dos Gregos e nos pergaminhos do Antigo Egipto, que diziam que esse senhor tinha quatro olhos e quatro asas, mas que tinha sérias dúvidas sobre essa versão trazida até nós através da penumbra dos tempos não medidos.


Ao tomarem conhecimento das tarefas desse velhinho, os homens de imediato tentaram imitá-lo na contagem do tempo, construindo ao longo da História os mais diversos e sofisticados instrumentos de medição, como relógios de água, de sol, de areia, de parede, de pulso, e até de fogo. Não satisfeitos, colocaram instrumentos de medida do tempo ligados aos sinos das altas torres das igrejas, os quais badalavam os tempos pelas cidades e aldeias e planícies, ressoando na distância por vales e quebradas.


Alguns foram tão longe, que até deram o nome de cronómetro a mais um invento. O velhinho não gostou do abuso, e considerou mesmo assaz descarado o atrevimento do homem, ao incrustar o seu nome sagrado no do estéril invento, como se fora uma prótese. O homem devia venerar o seu nome, por este representar o Tempo absoluto, porque extraterreno e eterno, que não aquele de que se veste a relatividade comezinha dos humanos.


Não satisfeitos, os homens foram ainda mais alto, e inventaram uns relógios esquisitos a que pomposamente deram o nome de atómicos, e semearam-nos por espaços estranhos a que chamaram auto-estradas da informação para que os tempos fossem, assim, melhor medidos.
Mal sabiam os homens que contra si próprios trabalhavam. Desde que os seus inventos viram a luz do dia, cedo as noites desceram sobre eles e eram tão curtas que lhes não permitiam descansar. E os homens passaram então a zangar-se uns com os outros logo pela manhã, apontando para os aparelhos medidores, como que a pedir razões dos atrasos aos infractores. E a vida nunca mais foi doce e pausada como na era do antes.


O senhor velho ri-se de toda esta parafernália de instrumentos de pseudomedida, e diz que a mente doentia do homem lhe fez crer ter tido acesso a um grande invento, quando na realidade se trata de instrumentos ridículos e anacrónicos, porquanto não são capazes de medir nem de registar o tempo absoluto, que é o tempo de todas as partidas e chegadas, desde o instante zero até à meta, que fica na curva escondida da estrada, para além de todas as distâncias. Diz-nos esse senhor que só ele sabe o que é o tempo absoluto e que jamais os humanos o entenderão, tal como nunca compreenderão o espaço que os circunda até ao infinito, limitando-se eles a comparar o nada com o nada, e o pouco com o pouco, nas margens enigmáticas e precárias daquilo a que chamam vida.


“O absoluto mora longe, no vazio de todas as distâncias albergadas pelo infinito!” - gritou-nos um dia o velho senhor, elevando a sua voz da pausa e silêncio em que sempre estivera mergulhada, após o relógio grande da biblioteca ter distribuído metade das suas badaladas pela noite e outra metade pela madrugada.

"Desert Rose", Sting e Cheb Mami



esfinge


aqui me encontro na margem ocidental do faraónico nilo quando o sol se tinge de sangue por detrás da grande pirâmide preparando-se para mergulhar nos infindos horizontes da planície de gizé e vejo e sinto a grandiosidade milenar e mítica do egipto antigo e dou por mim rodeado de uma babel humana que parece ter tanta dificuldade em entender-se entre si e com os árabes como estes com os camelos e distraído interiorizo que o egípcio com quem tomo o chá do crepúsculo provavelmente é descendente de kéfren pois tem as feições da esfinge que por sua vez as terá herdado daquele faraó


e é então que dou conta do que me trouxe a estas paragens de areia e pedras que esmagam o vazio e o silêncio e surpreendo-me quando a enigmática figura me fita com o ar interrogador de quem sobreviveu à poeira fina das palavras e às cinzas do tempo espelhadas nas feridas profundas dos milénios que lhe sulcam o rosto e respondo à sua silente pergunta que não estou ali para tentar adivinhar o seu misterioso arcano e sim para lhe pedir que me ajude a decifrar o mito da vida e do amor ou seja tentar encontrar a chave de ouro do enigma que conduziu theseus a ariadne mas ela somente me diz que todo o enigma é um fio que se desalinhou da meada e resvalou pelas sombras escorregadias e frias do labirinto


e que é tão difícil saber qual o que conduz ao minotauro como o que leva a ariadne e acabo por acrescentar que já não quero que decifre nada porque de repente apreendi que os mitos são para respeitar e admirar sem condições tal como as deusas e os deuses de todos os olimpos e tudo isto lhe digo e repito várias vezes até que a esfinge num delírio inconsciente reflectido na dor lancinante que lhe assoma ao rosto e chorando grossas lágrimas de sol e areia que o cálido e abafadiço suão espalha pela planície ainda inflamada de luz do véspero me diz que nem ela é capaz de decifrar o enigma da sua própria existência quanto mais o da vida dos outros pois que julgava ser coeva da pirâmide de kéfren quando afinal tem mais cinco milénios que esta a fazer fé no que lhe dizem os humanos que violam os templos e os abismos sagrados da terra antiga


e assim à hora crepuscular que contorna o vazio de penumbra e areia parto amargurado deste deserto inóspito e tumular ao constatar que os enigmas são isso mesmo incógnitas adivinhações ou mitos que nem a esfinge agora um silencioso e compacto fantasma de pedra adormecido é capaz de decifrar e parto como disse na altura em que reinam as cobras e os escorpiões que são os melhores guardiões dos templos e túmulos perdidos dos reis do ermo que não querem ser roubados e ao mesmo tempo como se por entre flores corresse sinto-me feliz por saber que o teu doce discurso saciará o meu silêncio a sós na saudade infinda inscrita no rosto cativo da lua e das estrelas e anunciada nas areias e pedras escaldantes deste deserto assaz longe das margens precárias das cidades e das árvores apesar de parecer tudo tão perto da mensagem inicial e das promessas perdidas que vagueiam cindidas ao meio pelos vales estreitos da claridade cintilante que veste todas as miragens.