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O Senhor do Tempo



Costumava passear-se pelas divisões da nossa casa um senhor muito velho, que se detinha por períodos muito dilatados junto do enorme relógio pendular da biblioteca. Este, que se encontrava num dos cantos mais iluminados da grande sala rectangular, estava embutido numa enorme caixa de mogno negro com incrustações a ouro e prata. Ninguém sabia ao certo em que época fora construído aquele relógio. Sabíamos somente que o mesmo fora comprado pelo meu trisavô materno num leilão de objectos que tinham sido pertença dum conde arruinado. O senhor muito velho e muito alto tinha uma grande admiração pelo relógio. Diria mesmo que um enorme fascínio o retinha à frente do precioso medidor do tempo. Estava sempre presente quando o relógio surpreendia o silêncio da casa com as batidas monocórdicas das horas, anunciando que uma pequena partícula de vida, de matéria, ou de nada, desaparecera para sempre do local onde nunca estivera.


E se falo em silêncio, é porque este realmente se fazia sentir por toda a extensa sala, dado que até o som cavo e compassado do movimento oscilatório do pêndulo adormecera de cansaço, no incessante vaivém que flutuava ora aquém ora para além das memórias submersas. Vim a saber, alguns anos mais tarde, que era preferível chamar "tic-tac" a tal movimento pendular, e não “vaivém”, porquanto, na sua demora, o tempo que “vai” ausenta-se e já não “vem” mais.


O homem alto e velho, em cujos olhos negros e profundos habitava um ar lânguido de vagar e paciência, transportava na mão direita uma antiquíssima ampulheta, na qual colocara finíssimos grãos de areia do Infidável Deserto, que ficava para além dos cumes azuis da Grande Distância. Por vezes, trazia não esse relógio e sim uma clepsidra, também velhíssima na aparência, constituída por dois vasos de ouro da mesma capacidade. Vim a saber que a água que neles circulava fora trazida da Fonte Clepsidra, que ficava num solitário e montanhoso aclive da Messénia, lá longe, no ensolarado Peloponeso, e que fora nessa fonte que as ninfas banharam Zeus-menino.


Na mão sinistra o senhor idoso trazia sempre um enorme gadanho polido e afiado, embora já bastante denteado e coberto de ferrugem nos contornos opostos ao gume, logo a seguir ao cabo.


O velho senhor tinha barba e cabelos muito encanecidos, que lhe caíam pelo rosto e ombros em finíssimos fios de prata, e as mãos, que estavam muito bem tratadas, eram sulcadas por veias de um azul profundo e muito saliente. Estavam sempre estendidas para a terra, insinuando-se como se raízes ao contrário, que quisessem agarrar algo que nunca chegámos a decifrar.


Tinha um semblante muito triste, esse senhor. Cheguei a pensar que não gostava do seu ofício, embora eu não soubesse na altura se ele tinha alguma profissão. Vim a saber mais tarde, já muito longe da minha infância antiga, que o mester desse senhor lhe exigia um esforço tremendo e uma atenção cuidadosa e permanente. Mas, apesar dessa atenção especial e do cuidado extraordinário posto na execução das suas tarefas, e a despeito de ser um exímio matemático, enganava-se amiúde na contagem do tempo, o que talvez fosse devido à senilidade e ao cansaço. De tal forma, que, com uma frequência inusitada até nas contas dos homens, chegava a considerar que crianças de tenra idade eram já muito velhas. Por vezes também se enganava na contagem do tempo dos idosos, e estes faziam todos os possíveis por não lhe despertar a atenção, pois se o fizessem, ele nesse mesmo momento lhes fecharia as contas, saldando-as.


Em boa verdade, nós nunca víramos o senhor idoso que se passeava pela nossa casa, nem sabíamos ao certo da sua existência. Conhecíamo-lo apenas através de quadros pintados e assinados por pintores do Renascimento e até de épocas mais recuadas, mas pressentíamo-lo na sua errância pela casa.
Mais tarde, soubemos da sua existência real por um nosso vizinho e amigo, ao qual chamávamos avô, devido à sua avançada idade, muito embora parecesse um jovem se comparada a sua velhice com a do senhor da ampulheta.


Disse-nos esse vizinho, homem muito atilado e sabedor, porque viajado pelos raspados palimpsestos da Grécia Antiga, que esse velho era omnipresente, e desde sempre andara por ali, junto das pessoas, medindo todos os seus tempos. Até mesmo os tempos do passado sem futuro, os do presente sem pretérito, os do futuro sem presente e também os do infinitivo sem condicional. Disse-nos ainda que ele medira os tempos de todos os residentes da nossa casa desde a sua construção, há séculos, até aos nossos dias e que continuaria eternamente nessa tarefa de fim imprevisível. E dizia que esse senhor estava presente em todas as casas, e ruas e montanhas e mares, desde o princípio, medindo o tempo de todas as pessoas, animais e coisas.


Um dia perguntei ao meu avô-vizinho quem apontava o tempo desse velhinho, e ele respondeu-me que ninguém, porquanto o senhor muito idoso era o próprio Tempo. Trabalhava desde o arranque do árido e do vazio, quando nos umbrais dos abismos as sombras da vertigem inicial ainda nada tinham a ver com a luz e muito menos com as trevas. Desculpava-se o velhinho, dizendo que não dispunha de tempo para si, desde sempre. De resto, nem tal faria sentido, dado que esse senhor nada tinha. Era, somente.


Como disse, nós nunca víramos esse homem. Mas agora, que sabíamos que ele andava por ali, sentíamos amiúde a sua presença, os seus passos vagos e até a sua respiração surda e ofegante ao longo dos corredores extensos dos dias e das noites. Por vezes, pressentíamos um ligeiro rumor de asas, mas nunca chegámos a saber se o senhor tinha asas, apesar de pensarmos que ele necessitava delas para mais rapidamente se deslocar de um lado para o outro no cumprimento das suas tarefas urgentes. Tão habituados estávamos à sua companhia, que o mesmo já nos era familiar. Como se por ali andasse desde o início, tal como nos dissera o nosso vizinho.


E nós, e todas as pessoas, sabíamos que ele apontava todos os minutos e horas e dias e anos e até segundos das nossas vidas no velho pergaminho, e sabíamos que um dia esse homem já não teria mais tempo para apontar a cada um de nós nem aos outros. Em boa verdade, nunca chegámos a saber se era ele que, fatigado, decidia que já não queria apontar mais tempo, ou se este simplesmente chegara ao fim, independentemente da sua vontade. Talvez essa vontade fosse a das cristalinas gotas de água que ele recolhera na longínqua fonte da Messénia, no início do vazio, ou a dos finíssimos grãos de areia branca que trouxera do Infindável Deserto, no princípio da longa distância.


Numa noite chuvosa e fria, quando nos encontrávamos à lareira da biblioteca com o nosso vizinho, ouvimos o relógio bater compassadamente a meia-noite. Foi nesse preciso momento que lhe perguntei como se chamava o senhor que apontava o tempo.


O nosso vizinho respondeu-nos que alguns lhe chamam Cronos, enquanto outros lhe dão nomes diferentes. E acrescentou que ele cronometra tudo com um relógio muito especial e invisível, e por isso mesmo desconhecido dos humanos.


Disse-nos ainda que nos referiu que o senhor idoso se regulava por clepsidras e relógios de areia, por assim ter lido nos rasurados palimpsestos dos Gregos e nos pergaminhos do Antigo Egipto, que diziam que esse senhor tinha quatro olhos e quatro asas, mas que tinha sérias dúvidas sobre essa versão trazida até nós através da penumbra dos tempos não medidos.


Ao tomarem conhecimento das tarefas desse velhinho, os homens de imediato tentaram imitá-lo na contagem do tempo, construindo ao longo da História os mais diversos e sofisticados instrumentos de medição, como relógios de água, de sol, de areia, de parede, de pulso, e até de fogo. Não satisfeitos, colocaram instrumentos de medida do tempo ligados aos sinos das altas torres das igrejas, os quais badalavam os tempos pelas cidades e aldeias e planícies, ressoando na distância por vales e quebradas.


Alguns foram tão longe, que até deram o nome de cronómetro a mais um invento. O velhinho não gostou do abuso, e considerou mesmo assaz descarado o atrevimento do homem, ao incrustar o seu nome sagrado no do estéril invento, como se fora uma prótese. O homem devia venerar o seu nome, por este representar o Tempo absoluto, porque extraterreno e eterno, que não aquele de que se veste a relatividade comezinha dos humanos.


Não satisfeitos, os homens foram ainda mais alto, e inventaram uns relógios esquisitos a que pomposamente deram o nome de atómicos, e semearam-nos por espaços estranhos a que chamaram auto-estradas da informação para que os tempos fossem, assim, melhor medidos.
Mal sabiam os homens que contra si próprios trabalhavam. Desde que os seus inventos viram a luz do dia, cedo as noites desceram sobre eles e eram tão curtas que lhes não permitiam descansar. E os homens passaram então a zangar-se uns com os outros logo pela manhã, apontando para os aparelhos medidores, como que a pedir razões dos atrasos aos infractores. E a vida nunca mais foi doce e pausada como na era do antes.


O senhor velho ri-se de toda esta parafernália de instrumentos de pseudomedida, e diz que a mente doentia do homem lhe fez crer ter tido acesso a um grande invento, quando na realidade se trata de instrumentos ridículos e anacrónicos, porquanto não são capazes de medir nem de registar o tempo absoluto, que é o tempo de todas as partidas e chegadas, desde o instante zero até à meta, que fica na curva escondida da estrada, para além de todas as distâncias. Diz-nos esse senhor que só ele sabe o que é o tempo absoluto e que jamais os humanos o entenderão, tal como nunca compreenderão o espaço que os circunda até ao infinito, limitando-se eles a comparar o nada com o nada, e o pouco com o pouco, nas margens enigmáticas e precárias daquilo a que chamam vida.


“O absoluto mora longe, no vazio de todas as distâncias albergadas pelo infinito!” - gritou-nos um dia o velho senhor, elevando a sua voz da pausa e silêncio em que sempre estivera mergulhada, após o relógio grande da biblioteca ter distribuído metade das suas badaladas pela noite e outra metade pela madrugada.

1 comentário:

Anónimo disse...

O absoluto mora longe, no vazio de todas as distâncias. Uma grande verdade!