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Escrevo-te a tinta virtual



Sem forma, nem gesto, nem face,
como tinta de sangue que lacera as penas
nos abismos de uma enorme ferida,
a luz purpúrea e equinocial do cair da tarde
penetra como um espinho na minha carne.

Escrevo-te a tinta virtual.
Imperceptível, mas indelével.
O papel, um cristal de vídeo
numa floresta de sons mudos
vestidos da distância que traja
a dor imperecível da saudade.

Escrevo-te a tinta de água.
As minhas pálpebras piscam
sobre a íris fatigada
na perscrutação do horizonte líquido
de que se revestem as lágrimas.

Escrevo-te, pois, a tinta de sal,
imaginando que te vejo
através da bruma vermelha
que beija o mar e a areia
nos espelhos de silêncio
que purpurejam o ocaso.

Como vento bramindo rente ao velame
de um navio sem roteiro e sem escala,
os meus dedos fustigam as claves mudas
enquanto te sonham lume e verbo
no recuo da tarde frente à noite escura.
Escrevo-te, assim, a tinta de sangue.
A tinta de sangue te escrevo
nos umbrais do incêndio em que anoiteço.





Dá-me um pedaço desse teu deserto nu,
e com ele modelarei os meus dedos de areia.
E os meus dedos de areia hão-de ter raízes
e dessas raízes hão-de brotar palavras sobre as claves mudas.
E as claves mudas hão-de converter-se em lenho
e o lenho em nau. Uma nau romana, estranha,
de fogo e verbo greco-latinos, ondulando vertiginosamente sobre a espuma das águas
ao sabor das rajadas inclementes do vulturno.
Como um nocturno avejão de asas largas
profundamente dilaceradas.


Uma nau sem velas, nem leme, nem mastros, nem remos,
vogando opaca e silenciosa na noite atra
em busca de um porto de abrigo.
Uma nau fantasma que tenha por vexilo
a saudade da memória inicial
e por tripulantes os espectros de pedra, vento e areia,
que são os meus dedos de silício. Nados do deserto urbano. Que é o meu deserto.
O deserto nu onde te procuro,
ora convertido num frígido e plangente cristal de vídeo.


E é este gélido cristalino que teima em alterar,
por inversão, as retínicas e idílicas imagens
dos meus horizontes longínquos. Perdidos na voragem
da distância-abismo gerada e soprada por muitas ondas,
nesta floresta panda de sons mudos que esmagam o vazio.
Vazio que se veste de espelhos de branca espuma
e de uma miríade de lâmpadas estranhas.


Procuro-te, pois, no deserto urbano, através do abismo das sílabas
e de uma infinidade de labirintos sem margens.
Sei que é no seu termo que se encontra a afirmação dos teus olhos
e a confirmação do teu sorriso ático.
Por entre o silêncio tácito das arcas encoiradas
e o sossego deslumbrante dos livros antigos,
surges-me, assim, sol, asa, brisa, farol,
e ao teu porto de abrigo me recolho
como sedento peregrino ao viridente oásis.


R. Sakamoto – Merry Christmas Mr. Lawrence


É Natal, e no entanto…



Ah, pudesse eu ser início,
a chuva, o vento, o breve relâmpago
ou a resplandecente alvorada
de onde brotam todas as coisas!

Ser talvez um reflexo de tempo e de sol
sobre a vertigem da gota de orvalho
que cintila sobre os espelhos da madrugada.

Ser a ponte pênsil sobre o vazio
ou porventura a quietude indecisa do nada.


Ah, pudesse eu ser a palavra
ou o sinal do vento estranho
que escolta a ave que no outono emigra
num rumo de primaveras e árvores verdes
numa façanha irisada de infinitos!


Ah, pudesse eu entrar pela estrela de alva
e ouvir a tua voz nítida e doce
pairando sobre a quietude do solstício
num anúncio de aconchego e de Natal!


Ah, mas não sou,
não posso ser,
nem ouço a tua voz…
e assim me calo.








Não obstante...


Há algo de diferente
no círculo luminoso do Natal.
Algo radioso e belo
que, furtivo, se insinua
num despertar tranquilo e sem lamentos.
Como se as estrelas embutidas no firmamento
até nós descessem, inconscientes,
para fazer parte da nossa carne e da nossa mente.


(Como se desde sempre nos pertencessem)

Oliver Shanti & Joanne Shenandoah, "You can hear them dancing"


a flor do jarro



no vale do amor
sob as colinas
a bráctea alva
e espiralada
de uma flor de jarro.


deambula na envolvência
silente dos lençóis
e nos contornos do lume
quente dos seus olhos.


veleja na luz intensa
e sem penumbras
dos seus túmidos seios.


os seus dedos de areia
vagueiam pela epiderme incendiada
e naufragam nos anéis
de centeio dos seus cabelos.


em delírio
devaneiam.


tresvariam na nudez escarlate
e nítida dos anelos
noite após noite
sobre a pele mate
como se rubras pétalas
de rosas perfumadas
vogando ao sabor do vento...
abertas.




Camille Saint-Saens, "Danse macabre, opus 40" (1874)
(estreada no Teatro da Corte de Weimar em 2DEZ1877)





(…)
Praias do Índico, idos de 2001.

Aqui, quando quente e húmido o vento sopra do largo, é Natal. E as chuvas da Monção abatem-se sobre o hotel e recordam-me a noite tempestuosa e bela em que nos tivemos nos braços um do outro. Lembras-te da bela surpresa que me fizeste com um véu que portava o Taj Mahal?
Nostálgico, mergulho nas mornas águas da Mãe África, e enquanto elas me empurram rumo à superfície, lembro-me do nosso tempo único e irrepetível.
Aqui estou agora, à tua espera, nesta erma praia do Amor, onde as areias faíscam de ouro régio e é possível sonhar sereias e pégasos porque estas são as terras míticas e “abensonhadas” de Mia Couto.
Resisti em regressar a estas paragens onde nos amámos, mas um dia, dois moçambicanos que encontrei no Terreiro do Paço, mostraram-me fotografias de tandos e florestas, e de mulheres e de homens de África com seus belos torsos nus, em tudo semelhantes àqueles que no Sudão fizeram a paixão de Riefenstahl, a fotógrafa maldita, e eu não resisti e obedeci ao chamamento da saudade.
A minha pele tisnada e crestada pelo Sol africano, assemelha-se à destes Hércules, e mal consigo entreabrir os olhos para admirar o mar que tenho a meus pés, que vibra em miríades de centelhas de prata, tal a intensidade do astro-rei que parece ancorado nos espelhos de claridade deste céu infinitamente opalino e transparente.(…)

Peregrino, in “O Templo das palavras Esquecidas)




Peregrino, in "O Templo das Palavras Esquecidas"




Gotan Project – Paris, Texas






Sonho, não quero acordar





Mote:
Entre lençóis de alvo linho,
sonho, não quero acordar.




À noite o meu pensamento
abrigarei com ternura,
consumando a aventura
de viajar com o vento.
Qual ave que busca o ninho
para nele pernoitar,
entre lençóis de alvo linho,
sonho, não quero acordar.



Já me atormenta a saudade
de ao seu seio me acolher
e tudo farei no mister
de amar a minha deidade
com a doçura e carinho
com que a areia beija o mar.
Entre lençóis de alvo linho,
sonho, não quero acordar.



Este eterno delirar
beijando os lábios macios
em devaneios ao luar,
afasta os dias sombrios.
Nas noites em que caminho
ao longo do seu olhar,
entre lençóis de alvo linho,
sonho, não quero acordar.


E dou por mim a cismar:
não perderei a esperança
do dulçor do seu olhar
que o meu coração já alcança.
Com ela vivo a sonhar
E não me sinto sozinho.
Entre lençóis de alvo linho,
sonho, não quero acordar.



Nas noites silenciosas,
sob um quarto de luar,
busco as suas mãos mimosas
e beijo os seus lábios rosas
no pinheiral junto ao mar.
Por entre aromas de pinho,
entre lençóis de alvo linho,
sonho, não quero acordar.



Quando nas noites d’Inverno
o meu corpo com o seu fremir
na magia dum beijo terno,
com ela vou compartir
por sobre a neve de arminho
a luz do céu estelar.
Entre lençóis de alvo linho,
sonho, não quero acordar.




o amor



este sentir
este dulçor
que nos envolve
e que ressoa
e se repete
e se insinua
ora agitado
como uma vaga
ora sereno
qual luz da lua
e sem embargo
evanescente
qual breve espuma
ontem e hoje
tal como dantes
eternamente
meloso e amargo
como as flores
e se enciúma
por tantas vezes
tão requebrado
e elanguescente
e sobremodo
tão estranho
e tão bondoso
antes cativo
tão doloroso
pesado e leve
como um suspiro
quando nos foge
e faz sofrer
tão abstracto
quanto alheio
e indefinível
e tão imenso
quão impreciso
indecifrável
misterioso
acaso simples
e no entanto
tão complicado
e tão difícil
que ora aquece
ora resfria
sem ser fogo
sem ser gelo
pedra polida
quase infrangível
e todavia
também se quebra
por vezes alto
quase intangível
impetuoso
na eterna busca
de fins sem meios
é cego e surdo
por vezes louco
nos seus anseios
de tudo um pouco
e apesar disso
é tão fiel
e tão maduro
e tão constante
quantas as vezes
em que é instável
porque imaturo
e inconstante
e ainda assim
tão perdoável
mesmo na dor
e no castigo
este sentir
esta emoção
esta harmonia
esta paixão
que nos envolve
em alegria
esta doçura
este langor
que nos atrai
e nos encanta
que às vezes parte
num mar de lágrimas
mas não se esvai
antes redobra
e não soçobra
tão promissor
sempre que volta
chama-se amor.







desencontro




procuro-te no silêncio agudo
das arestas da noite.
respondem-me os néons,
em equações severas, nocturnas,
que se espraiam em sombras
soturnas pelo estuário da minha mente.


oh, como é dura e arbitrária
a álgebra dos amantes!
maleável para muitos,
para outros imperscrutável,
rege-se por insanas equações
com muitas incógnitas
e raras soluções.


sigo o fogo do teu corpo
que aquece a noite
e dissipa a cerração.
sinto-te perto.
desço a “avenida da solidão”
e enxergo, na neblina
que se ergue do rio,
a brancura suave do teu colo.


subo atrás de ti a “rua do silêncio”,
onde, na madrugada das estrelas,
cai uma poalha de ouro
que flutua em cristais de luz e cor
que se confundem com os teus cabelos.


sigo-te agora nas brisas
do nardo e do jasmim.
no ar, uma mistura de essências e perfumes
faz-me perder de novo o rumo.


uma flor de lótus embriagada
flutua e dança num lago de lua.
delineia, na sua marmórea limpidez,
a curva que do teu ombro desce ao núbil flanco.
no enigma de espelhos que me rodeia
esqueço-me e confundo-me a meio do largo.


na geometria distraída duma placa toponímica
se prende a minha atenção.
gravadas a letras negras e silenciosas,
caem sobre mim, dolorosas,
as palavras “largo da desilusão”.


comparo-te ao fulgor das estrelas
que brilham na escuridão:
azul e oiro sobre os abismos da noite.
como os astros, não te deixas tocar.


[- tempo, silêncio, distância -
três incógnitas indecifráveis
navegando à bolina
sobre a equação cristalina do teu olhar.]



eflúvios




como a chuva
que meus lábios molha
quisera receber de ti
a mádida pérola
que teimosa
pela tua face rola
e se abandona
no veludo dos teus lábios.



quisera ser para ti o chão
que bebe a uva
e recebe a folha
que baixa do outono
na desfolha
da minha solidão.



quisera ser a viração singela
que beija os teus cabelos
e afaga o teu belo rosto
em cuidadosos desvelos
nas manhãs de primavera.



quisera alcançar a felicidade
nirvânica da certeza mística
e receber de ti o estável equilíbrio
do infinito absoluto
cuja nitidez dói
de tão intensamente azul.


quisera…


Ralph Vaughan Williams (1872-1958) - "Sir John in Love",
frag. “Fantasia on Greensleeves “






folhas de outono


na alameda do esquecimento,
onde o vento de outono
varre as folhas esquálidas,
outrora verdes,
oiço os suspiros moribundos
dos velhos estandartes
que na vernal brisa drapejaram
tendo por fundo o azul dos céus.


na frescura dos tempos idos,
ciciavam aos rouxinóis e colibris
o hino e a alegria da mãe natura,
a mesma que ora as aniquila e devora
como pássaros mortalmente feridos,
enquanto o viço da relva, soluçante,
bebe as suas lágrimas de sangue e de cansaço
e em orvalhados beijos se despede
das rumorejantes companheiras de um equinócio distante.


[tal como os humanos,
as folhas de outono não entendem
o eterno e incessante retorno das coisas]



El Condor Pasa - Espíritu Andino




Zeferino



Zeferino tem tudo
o que quer
e o que não quer


Tem emprego
mulher na cama
dinheiro no banco
filho na escola


Não tem amante
mas sabe que ama
e todavia sente-se
pássaro na gaiola


Com sonhos condores
quer subir aos píncaros
e ver as fontes e ouvi-las
no inquieto sossego
de seus rumores


Quer escutar
o ramalhar das árvores
nas encostas dos montes
dormir ao relento
ouvir o rouxinol
sentir nas faces o vento


Zeferino quer fugir
p’ra ver morrer o Sol
em baixela de oiro
à tardinha no mar
e em taça de prata
ver nascer a Lua
atrás da serra


Mas Zeferino
preso em casa
põe-se à janela
e só vê a rua.



O Senhor do Tempo



Costumava passear-se pelas divisões da nossa casa um senhor muito velho, que se detinha por períodos muito dilatados junto do enorme relógio pendular da biblioteca. Este, que se encontrava num dos cantos mais iluminados da grande sala rectangular, estava embutido numa enorme caixa de mogno negro com incrustações a ouro e prata. Ninguém sabia ao certo em que época fora construído aquele relógio. Sabíamos somente que o mesmo fora comprado pelo meu trisavô materno num leilão de objectos que tinham sido pertença dum conde arruinado. O senhor muito velho e muito alto tinha uma grande admiração pelo relógio. Diria mesmo que um enorme fascínio o retinha à frente do precioso medidor do tempo. Estava sempre presente quando o relógio surpreendia o silêncio da casa com as batidas monocórdicas das horas, anunciando que uma pequena partícula de vida, de matéria, ou de nada, desaparecera para sempre do local onde nunca estivera.


E se falo em silêncio, é porque este realmente se fazia sentir por toda a extensa sala, dado que até o som cavo e compassado do movimento oscilatório do pêndulo adormecera de cansaço, no incessante vaivém que flutuava ora aquém ora para além das memórias submersas. Vim a saber, alguns anos mais tarde, que era preferível chamar "tic-tac" a tal movimento pendular, e não “vaivém”, porquanto, na sua demora, o tempo que “vai” ausenta-se e já não “vem” mais.


O homem alto e velho, em cujos olhos negros e profundos habitava um ar lânguido de vagar e paciência, transportava na mão direita uma antiquíssima ampulheta, na qual colocara finíssimos grãos de areia do Infidável Deserto, que ficava para além dos cumes azuis da Grande Distância. Por vezes, trazia não esse relógio e sim uma clepsidra, também velhíssima na aparência, constituída por dois vasos de ouro da mesma capacidade. Vim a saber que a água que neles circulava fora trazida da Fonte Clepsidra, que ficava num solitário e montanhoso aclive da Messénia, lá longe, no ensolarado Peloponeso, e que fora nessa fonte que as ninfas banharam Zeus-menino.


Na mão sinistra o senhor idoso trazia sempre um enorme gadanho polido e afiado, embora já bastante denteado e coberto de ferrugem nos contornos opostos ao gume, logo a seguir ao cabo.


O velho senhor tinha barba e cabelos muito encanecidos, que lhe caíam pelo rosto e ombros em finíssimos fios de prata, e as mãos, que estavam muito bem tratadas, eram sulcadas por veias de um azul profundo e muito saliente. Estavam sempre estendidas para a terra, insinuando-se como se raízes ao contrário, que quisessem agarrar algo que nunca chegámos a decifrar.


Tinha um semblante muito triste, esse senhor. Cheguei a pensar que não gostava do seu ofício, embora eu não soubesse na altura se ele tinha alguma profissão. Vim a saber mais tarde, já muito longe da minha infância antiga, que o mester desse senhor lhe exigia um esforço tremendo e uma atenção cuidadosa e permanente. Mas, apesar dessa atenção especial e do cuidado extraordinário posto na execução das suas tarefas, e a despeito de ser um exímio matemático, enganava-se amiúde na contagem do tempo, o que talvez fosse devido à senilidade e ao cansaço. De tal forma, que, com uma frequência inusitada até nas contas dos homens, chegava a considerar que crianças de tenra idade eram já muito velhas. Por vezes também se enganava na contagem do tempo dos idosos, e estes faziam todos os possíveis por não lhe despertar a atenção, pois se o fizessem, ele nesse mesmo momento lhes fecharia as contas, saldando-as.


Em boa verdade, nós nunca víramos o senhor idoso que se passeava pela nossa casa, nem sabíamos ao certo da sua existência. Conhecíamo-lo apenas através de quadros pintados e assinados por pintores do Renascimento e até de épocas mais recuadas, mas pressentíamo-lo na sua errância pela casa.
Mais tarde, soubemos da sua existência real por um nosso vizinho e amigo, ao qual chamávamos avô, devido à sua avançada idade, muito embora parecesse um jovem se comparada a sua velhice com a do senhor da ampulheta.


Disse-nos esse vizinho, homem muito atilado e sabedor, porque viajado pelos raspados palimpsestos da Grécia Antiga, que esse velho era omnipresente, e desde sempre andara por ali, junto das pessoas, medindo todos os seus tempos. Até mesmo os tempos do passado sem futuro, os do presente sem pretérito, os do futuro sem presente e também os do infinitivo sem condicional. Disse-nos ainda que ele medira os tempos de todos os residentes da nossa casa desde a sua construção, há séculos, até aos nossos dias e que continuaria eternamente nessa tarefa de fim imprevisível. E dizia que esse senhor estava presente em todas as casas, e ruas e montanhas e mares, desde o princípio, medindo o tempo de todas as pessoas, animais e coisas.


Um dia perguntei ao meu avô-vizinho quem apontava o tempo desse velhinho, e ele respondeu-me que ninguém, porquanto o senhor muito idoso era o próprio Tempo. Trabalhava desde o arranque do árido e do vazio, quando nos umbrais dos abismos as sombras da vertigem inicial ainda nada tinham a ver com a luz e muito menos com as trevas. Desculpava-se o velhinho, dizendo que não dispunha de tempo para si, desde sempre. De resto, nem tal faria sentido, dado que esse senhor nada tinha. Era, somente.


Como disse, nós nunca víramos esse homem. Mas agora, que sabíamos que ele andava por ali, sentíamos amiúde a sua presença, os seus passos vagos e até a sua respiração surda e ofegante ao longo dos corredores extensos dos dias e das noites. Por vezes, pressentíamos um ligeiro rumor de asas, mas nunca chegámos a saber se o senhor tinha asas, apesar de pensarmos que ele necessitava delas para mais rapidamente se deslocar de um lado para o outro no cumprimento das suas tarefas urgentes. Tão habituados estávamos à sua companhia, que o mesmo já nos era familiar. Como se por ali andasse desde o início, tal como nos dissera o nosso vizinho.


E nós, e todas as pessoas, sabíamos que ele apontava todos os minutos e horas e dias e anos e até segundos das nossas vidas no velho pergaminho, e sabíamos que um dia esse homem já não teria mais tempo para apontar a cada um de nós nem aos outros. Em boa verdade, nunca chegámos a saber se era ele que, fatigado, decidia que já não queria apontar mais tempo, ou se este simplesmente chegara ao fim, independentemente da sua vontade. Talvez essa vontade fosse a das cristalinas gotas de água que ele recolhera na longínqua fonte da Messénia, no início do vazio, ou a dos finíssimos grãos de areia branca que trouxera do Infindável Deserto, no princípio da longa distância.


Numa noite chuvosa e fria, quando nos encontrávamos à lareira da biblioteca com o nosso vizinho, ouvimos o relógio bater compassadamente a meia-noite. Foi nesse preciso momento que lhe perguntei como se chamava o senhor que apontava o tempo.


O nosso vizinho respondeu-nos que alguns lhe chamam Cronos, enquanto outros lhe dão nomes diferentes. E acrescentou que ele cronometra tudo com um relógio muito especial e invisível, e por isso mesmo desconhecido dos humanos.


Disse-nos ainda que nos referiu que o senhor idoso se regulava por clepsidras e relógios de areia, por assim ter lido nos rasurados palimpsestos dos Gregos e nos pergaminhos do Antigo Egipto, que diziam que esse senhor tinha quatro olhos e quatro asas, mas que tinha sérias dúvidas sobre essa versão trazida até nós através da penumbra dos tempos não medidos.


Ao tomarem conhecimento das tarefas desse velhinho, os homens de imediato tentaram imitá-lo na contagem do tempo, construindo ao longo da História os mais diversos e sofisticados instrumentos de medição, como relógios de água, de sol, de areia, de parede, de pulso, e até de fogo. Não satisfeitos, colocaram instrumentos de medida do tempo ligados aos sinos das altas torres das igrejas, os quais badalavam os tempos pelas cidades e aldeias e planícies, ressoando na distância por vales e quebradas.


Alguns foram tão longe, que até deram o nome de cronómetro a mais um invento. O velhinho não gostou do abuso, e considerou mesmo assaz descarado o atrevimento do homem, ao incrustar o seu nome sagrado no do estéril invento, como se fora uma prótese. O homem devia venerar o seu nome, por este representar o Tempo absoluto, porque extraterreno e eterno, que não aquele de que se veste a relatividade comezinha dos humanos.


Não satisfeitos, os homens foram ainda mais alto, e inventaram uns relógios esquisitos a que pomposamente deram o nome de atómicos, e semearam-nos por espaços estranhos a que chamaram auto-estradas da informação para que os tempos fossem, assim, melhor medidos.
Mal sabiam os homens que contra si próprios trabalhavam. Desde que os seus inventos viram a luz do dia, cedo as noites desceram sobre eles e eram tão curtas que lhes não permitiam descansar. E os homens passaram então a zangar-se uns com os outros logo pela manhã, apontando para os aparelhos medidores, como que a pedir razões dos atrasos aos infractores. E a vida nunca mais foi doce e pausada como na era do antes.


O senhor velho ri-se de toda esta parafernália de instrumentos de pseudomedida, e diz que a mente doentia do homem lhe fez crer ter tido acesso a um grande invento, quando na realidade se trata de instrumentos ridículos e anacrónicos, porquanto não são capazes de medir nem de registar o tempo absoluto, que é o tempo de todas as partidas e chegadas, desde o instante zero até à meta, que fica na curva escondida da estrada, para além de todas as distâncias. Diz-nos esse senhor que só ele sabe o que é o tempo absoluto e que jamais os humanos o entenderão, tal como nunca compreenderão o espaço que os circunda até ao infinito, limitando-se eles a comparar o nada com o nada, e o pouco com o pouco, nas margens enigmáticas e precárias daquilo a que chamam vida.


“O absoluto mora longe, no vazio de todas as distâncias albergadas pelo infinito!” - gritou-nos um dia o velho senhor, elevando a sua voz da pausa e silêncio em que sempre estivera mergulhada, após o relógio grande da biblioteca ter distribuído metade das suas badaladas pela noite e outra metade pela madrugada.

"Desert Rose", Sting e Cheb Mami



esfinge


aqui me encontro na margem ocidental do faraónico nilo quando o sol se tinge de sangue por detrás da grande pirâmide preparando-se para mergulhar nos infindos horizontes da planície de gizé e vejo e sinto a grandiosidade milenar e mítica do egipto antigo e dou por mim rodeado de uma babel humana que parece ter tanta dificuldade em entender-se entre si e com os árabes como estes com os camelos e distraído interiorizo que o egípcio com quem tomo o chá do crepúsculo provavelmente é descendente de kéfren pois tem as feições da esfinge que por sua vez as terá herdado daquele faraó


e é então que dou conta do que me trouxe a estas paragens de areia e pedras que esmagam o vazio e o silêncio e surpreendo-me quando a enigmática figura me fita com o ar interrogador de quem sobreviveu à poeira fina das palavras e às cinzas do tempo espelhadas nas feridas profundas dos milénios que lhe sulcam o rosto e respondo à sua silente pergunta que não estou ali para tentar adivinhar o seu misterioso arcano e sim para lhe pedir que me ajude a decifrar o mito da vida e do amor ou seja tentar encontrar a chave de ouro do enigma que conduziu theseus a ariadne mas ela somente me diz que todo o enigma é um fio que se desalinhou da meada e resvalou pelas sombras escorregadias e frias do labirinto


e que é tão difícil saber qual o que conduz ao minotauro como o que leva a ariadne e acabo por acrescentar que já não quero que decifre nada porque de repente apreendi que os mitos são para respeitar e admirar sem condições tal como as deusas e os deuses de todos os olimpos e tudo isto lhe digo e repito várias vezes até que a esfinge num delírio inconsciente reflectido na dor lancinante que lhe assoma ao rosto e chorando grossas lágrimas de sol e areia que o cálido e abafadiço suão espalha pela planície ainda inflamada de luz do véspero me diz que nem ela é capaz de decifrar o enigma da sua própria existência quanto mais o da vida dos outros pois que julgava ser coeva da pirâmide de kéfren quando afinal tem mais cinco milénios que esta a fazer fé no que lhe dizem os humanos que violam os templos e os abismos sagrados da terra antiga


e assim à hora crepuscular que contorna o vazio de penumbra e areia parto amargurado deste deserto inóspito e tumular ao constatar que os enigmas são isso mesmo incógnitas adivinhações ou mitos que nem a esfinge agora um silencioso e compacto fantasma de pedra adormecido é capaz de decifrar e parto como disse na altura em que reinam as cobras e os escorpiões que são os melhores guardiões dos templos e túmulos perdidos dos reis do ermo que não querem ser roubados e ao mesmo tempo como se por entre flores corresse sinto-me feliz por saber que o teu doce discurso saciará o meu silêncio a sós na saudade infinda inscrita no rosto cativo da lua e das estrelas e anunciada nas areias e pedras escaldantes deste deserto assaz longe das margens precárias das cidades e das árvores apesar de parecer tudo tão perto da mensagem inicial e das promessas perdidas que vagueiam cindidas ao meio pelos vales estreitos da claridade cintilante que veste todas as miragens.






"Che"


Falar de ti, Comandante,
é ver-te curvado sobre armas e mapas
no centro da floresta verde-jade
sob o céu inclemente das Caraíbas
em demanda dos caminhos da liberdade.

É ver-te lutar à frente duma coluna
sob a metralha da tirania
nos visos e umbrias da Sierra Maestra
e a tratar noite e dia os camaradas
feridos em batalhas impossíveis.

É relembrar
os diários de teus cadernos
quando da Patagónia
à Amazónia peruana
combatias preconceitos e tabus
e tratavas e convivias
com os leprosos de Machu-Pichu
e davas uma palavra de ânimo
e de revolta aos sem-terra
e a todos os excluídos da sorte.

Falar de ti, Comandante,
é sentir da vida o desapego,
essa dor-consciência
que fere e fura os muros do silêncio
numa luta contínua e sem tréguas
pela liberdade do semelhante.

Falar de ti, Comandante,
é saber da firmeza do teu verbo
e da solidez do teu carácter
espelhados no olhar carismático
dolorosamente fixo
sob a estrela vermelha
duma boina azeviche.

Falar de ti, Comandante,
é falar de um sonho de Liberdade.



BAP - Bloguistas Anónimos Portugueses


Sugerimos aos bloguistas que tentem responder com sinceridade ao questionário seguinte, por forma a poderem avaliar se são ou não blogodependentes, para, em caso afirmativo, poderem fazer parte da nossa Irmandade, que já congrega cerca de cem mil bloguistas, e, assim, poderem beneficiar do indispensável apoio médico, psicológico e social.


Só tu poderás verificar se o programa da Irmandade dos Bloguistas Anónimos Portugueses, adiante designados por "BAG", tem para ti algum sentido e se pode ajudar-te. É uma decisão que terás de tomar por tua própria conta. Encara o vício de escrever de forma excessiva nos blogues como uma doença do foro psicológico, tal como enfrentarias qualquer grave doença física.


Dá respostas honestas às perguntas que se seguem, sobre a tua forma de escrever nos blogues, e seus efeitos na tua vida quotidiana (pouco tempo para dispensares à família, amigos e a ti próprio, e para te dedicares a outros tipos de lazer e, ainda, ao tempo que, eventualmente, perdes no teu emprego quando te ligas aos mais diversos blogues da Net).

Se responderes SIM a QUATRO ou mais destas ONZE perguntas, encontras-te na grave situação de blogo-dependente. Lembra-te de que não deves envergonhar-te ao admitires que tens um problema de saúde. Se existe realmente um problema, o importante é tentar solucioná-lo.



1- Já tentaste parar de escrever num blogue por cinco dias (ou mais), sem o conseguires ?


2- Ressentes-te com os conselhos dos outros, que tentam fazer-te parar de escrever nos blogues?

Muitas pessoas tentam ajudar os blogodependentes. Porém, a maioria dos bloguistas viciados ressente-se com os bons conselhos que lhes dão. Os BAG, se solicitados, darão algumas sugestões práticas sobre como viver sem os blogues.


3- Ao levantares-te de manhã, costumas ligar o computador, tendo em vista dar uma espreitadela pelo teu blogue e pelos blogues que manténs nos “favoritos”?

A maioria dos especialistas na matéria está convencida de que a resposta a esta pergunta fornece uma chave quase infalível sobre se um indivíduo está ou não a caminho da blogodependência, ou se já se encontra no limite da "normalidade" da escrita bloguística.


4- Invejas as pessoas que podem escrever nos blogues sem criar problemas a si ou aos outros?
É óbvio que milhões de pessoas podem escrever nos blogues - às vezes muito - nos seus contactos sócio/profissionais, sem causar danos sérios a si mesmos ou aos outros. Já alguma vez te interrogaste por que motivo, no teu caso, o blogue é, tão frequentemente, um convite ao desastre?


5- O teu problema de escrita bloguística em excesso tem-se agravado nas últimas três semanas? Todos os factos médicos conhecidos indicam que a blogodependência é uma doença progressiva. Uma vez perdido o controlo do tempo dedicado à escrita bloguística, o problema agrava-se e jamais desaparecerá sem ajuda especializada.


6- A escrita bloguística em excesso já te criou problemas no lar?


7- Apesar de prova em contrário, continuas a afirmar que escreves no blogue quando queres e paras quando queres?

Iludir-se a si mesmo, parece ser próprio do blogodependente.


8- Já alguma vez faltaste ao serviço por causa da escrita bloguística? (Atrasos superiores a 30 minutos contam para este efeito).


9- Se podes ligar-te à Net no serviço, por vezes dás uma espreitadela ao teu blogue ou a outros e escreves nos mesmos?


10- Já deixaste de passar um fim-de-semana com a família, fora da tua localidade de residência, só porque no local de destino não terias possibilidade de te ligares ao mundo dos blogues?


11- Já pensaste alguma vez que poderias aproveitar muito mais a vida, se não despendesses tantas horas nos blogues?


Qual foi a contagem?


Deste 4 ou mais respostas positivas? Em caso afirmativo, é mais que certo que tens um problema sério de escrita bloguística em excesso.
Tu és a única pessoa que poderá dizer, com certeza, se deves ou não procurar os BAP.



Caro confrade, se é certo que os BAP, em si, não podem resolver todos os teus problemas, também é certo que a intervenção dos mesmos poderá conduzir-te a uma vida mais simples, mais promissora e muitíssimo mais feliz.

Eis a solução que damos para o teu caso:


Vem até nós, bloguista Amiga/Amigo e receberás o conforto das lágrimas que todas as noites derramamos, à lareira, nas instalações da nossa Sede em Lisboa e da nossa Filial no Porto.



Vem até nós, AMIGA/AMIGO, e CHORA CONNOSCO. EM UNÍSSONO! CONVULSIVAMENTE!

O Irmão-Mor da Confraria

Frère Joseph


publicado no blogue Clix (já apagado) e no Expresso online por :Frère Joseph/Musicista/Peregrino :)))

McDonald's, Bombs & Coke ou a Febre de Sexta-feira à Noite


Depois de sete dias em Goa rumámos a New Delhi e dali seguimos num boeing da China Airlines para Shanghai onde no Hilton Hotel os arquitectos da ponte entre o Ocidente e o Oriente abanam o capacete nas noites rociadas de amor e eis que dou por mim a observar contigo do último piso a enorme e fulgurante estrela vermelha do partido que governa o dragão encimada num edifício da marginal mas logo noto o teu olhar amargurado preso nas crianças e velhos que destilam miséria amarela lá em baixo nas barcaças oscilantes do rio e enxergo agora duas lágrimas silenciosas que te saltam dos olhos e se despenham em miríades frente aos quarenta pisos do hotel e o meu pensamento voa para um país remoto e manso lá para as bandas do poente onde clamam pela tua presença num estranho blog mas tu não acorres ao chamamento E assim resolvemos deixar Shanghai e passar à sifilítica Saigão último reduto do Tio Sam em terras do Vietname que daqui deu às de vila diogo rebaptizada agora de Ho Chi Min onde o teimoso Uncle regressou desta feita com outras bombas e bandeiras que são as da adocicada e pegajosa Coca-Cola e as do viscoso e gordurento McDonald's Aqui nos chegam mais uma vez pelo telemóvel notícias do povo que do sol-posto exige a tua comparência e procuras um cyber tea para lhes dares notícias tuas e interpelas em inglês uma jovem vietnamita mas como ela não te entende fazes o gesto de levar uma chávena aos lábios e escreves num teclado imaginário ao mesmo tempo que desenhas no maço de Marlboro os traços invisíveis dum monitor de computador e ela faz-te um breve sinal de entendimento e leva-nos a um bar do outro lado da rua onde vários viets que sobreviveram ao napalm do Uncle Sam bebem chá e pigarreiam enquanto vêem na TV colocada sobre um velho piano um wild west cowboys spaghetti Aí tens cara amiga o que pediste uma chávena de chá um teclado – oh o teclado duma pianola - e um monitor de vídeo e achas sintomático o nome do bar “Apocalypse Now” e não havendo nada a fazer desistes da Net mas agora ao fim de sete dias já não podemos com o cheiro das cobras fritas nas ruas da ex-Saigão nem com a insistência das prostitutas que me abordam aos magotes a pé ou de riquexó não se importando minimamente com a tua presença e deixamos esta Ho Chi Min da miséria e do pecado e metemo-nos num avião da Singapore Airlines com destino ao paupérrimo e desventurado Tibete não para passarmos nele sete anos como o outro mas sim sete dias Estamos na cidade de Lhassa em terras roubadas aos lamas pelo imperialismo chinês que cospe aqui as suas leis - o Tio Sam aqui já não se mete - e o teu olhar silente observa no palácio-mosteiro de Potala os calmos monges de Buda de opas laranja como se pertencessem ao partido dum pequeno país do sol-posto em cânticos monocórdicos com horas de sepulcral silêncio e tu sorris pois a tua música também é feita de silêncios o teu destino tal como o meu é Katmandu mas como decidi aceitar o convite que Sua Santidade o Dalai Lama me fez em Lisboa por achar que a minha meditação e o meu silêncio eram merecedores dum prémio para permanecer sete dias no Tibete resolveste acompanhar-me e daqui seguirás para o hotel enquanto permaneço à chuva em frente do Potala e depois numa cerimónia monástica curvado ao toque do gongo olho de soslaio para a rua e verifico que desceste do riquexó que te levaria ao hotel e que te encontras agora no meio dos militares chineses os mesmos que me fulminaram com os olhos quando na véspera pronunciei a palavra TIBETE e os chinos berraram que essa palavra é maldita pelo que já não existe e que agora se deve dizer XIZANG ao que tu na altura soltaste uma estentórica gargalhada como é costume em situações burlescas e eles ainda mais se agravaram connosco mas lá nos deixaram permanecer na cidade mítica dos Lamas onde os ascéticos monges riram em silêncio quando repararam que eu tinha a cabeça rapada como eles e deram-me então uma túnica que coloquei sobre as jeans e t-shirt e logo ali fiquei monge enquanto tu rias a bandeiras despregadas sob o olhar grave dos bonzos quando me ofereceram uma malga dizendo que estaria quase sempre vazia Soltaste de novo uma sonora e cristalina gargalhada tendo os sacerdotes budistas fixado em ti os seus olhares circunspectos estranhando o teu salutar sentido de humor e depois de sete dias para mim bem dormidos e mal comidos amanheceste no hotel com a alvorada das estrelas e surgiste no Potala de onde saímos na companhia de três bonzos calmos e silenciosos como nós e montados em muares nos dirigimos para os gélidos Himalaias a caminho da alvacenta Katmandu carregada de neve onde recentemente o príncipe herdeiro matou toda a família e se suicidou em seguida no palácio dos mil e setecentos aposentos Deveríamos partir daqui para Bagdad mas não conseguimos os vistos dado que neste momento o Uncle Sam toma conta daquela cidade mártir e de todo o país de que é capital os quais destruiu durante três semanas a fio na mira do sangue negro que corre pelas suas entranhas e ainda com o fito de atulhar aquela pobre gente com o colesterol dos viscosos hambúrgueres e a cocaína da pegajosa bebida Assim muito em breve chegaremos a Olisippo a bela capital a que uma amiga chama Lisoptima na qual reina a paz e a concórdia o que sem dúvida se deve à sorte de ser capital de um país de brandos costumes que não tem no subsolo uma única gota do viscoso ouro negro que se dá pelo nome de crude mas agora é de novo noite na cidade das sete colinas onde os astros nus beijam as casas e as árvores e vagueio em sonho por entre estas e as vagas de vento frio e húmido que ameaça chuva e procuro o teu rosto os teus olhos os teus lábios e a textura veludínea e quente da tua pele mas não os encontro pois que estão na margem do silêncio profundo para além de todos os rios e dos sete abismos que marginam as montanhas da distância perene...