Mikhail Ivanovitch Glinka, "Nocturno para harpa" (1839).
Quase nocturno
Engastado de mil cristais
é azul e fresco o céu nocturno.
Alta vai a Lua de Março,
círculo branco de prata
constelado pelo Serpentário.
Lua lânguida e trémula
que beija as ondas luminosas
do teu cabelo solto
e o carmim cintilante dos teus lábios.
Flava e imóvel
a seara de estrelas
paira sob a abóbada
zelosa do lume vivo dos teus olhos
e da doçura da tua boca fresca.
No veludo dos teus lábios
acesos na cor dos cravos
flutua um sorriso de fada.
Navego nesse sorriso
e naufrago na superfície dos teus olhos.
Trago nos meus abrigadas as mil distâncias,
essas linhas imensuráveis e exactas
que se fundem no sal mítico das lágrimas.
Trago nos pulsos o sangue roxo
das amoras bravas
e nos lábios o mel do verbo
que colhi contigo no verão passado.
E trago comigo o grito da águia solitária,
esse brado selvagem que ecoa no deserto
em cujas areias se fundem os meus sonhos
e onde as pérolas que brotam dos teus olhos
se desfazem em miríades de cristais
que sorvo silente a longos haustos.
Navego assim sem regresso
na curva ardente dos teus lábios
no rio fluente e sem margens
do teu sorriso ático.